Durante as duas últimas semanas tenho
começado os meus dias cometendo um furto. Não sei como evitar esse pecado e,
para dizer a verdade, não quero evitá-lo. A culpa é de uma amoreira que.
desobedecendo às ordens do muro que a cerca, lançou seus galhos sobre a
calçada. Não satisfeita, encheu-os de gordas amoras pretas, apetitosas,
tentadoras, ao alcance da minha mão. Parece que os frutos são, por vocação,
convites a furtos: basta mudar a ordem de uma única letra... Penso que o caso
da amoreira comprova essa tese linguística: tudo tem a ver com o nome. Pois
amora é palavra que, se repetida muitas vezes, amoramoramoramoramora, vira
amor. Pois não é isso que é o amor? Um desejo de comer, um desejo de ser
comido... O muro, tal como o mandamento, diz que é proibido. Mas o amor não se
contém e, travestido de amora, salta por cima da proibição. Foi assim no
paraíso... Os poucos transeuntes que passam por ali àquela hora da manhã talvez
se espantem ao ver um homem de cabelos brancos colhendo amoras proibidas. Mas,
se prestarem bem atenção, verão que quem está ali não é um homem com cerca de
70 anos, é um menino. E como foi o próprio filho de Deus que disse que é
preciso voltar a ser menino para entrar no Reino dos Céus, colho e como as
amoras com convicção redobrada. E para que não pairem dúvidas sobre a
inspiração teologal do meu ato, enquanto mastigo e o caldo roxo me suja dedos e
boca, vou repetindo as palavras sagradas: "Tomai e bebei, este é o meu
sangue...". Ah! A divina amora, graciosa dádiva sacramental! Começo assim
o meu dia, furtando o fruto mágico que opera o milagre por todos sonhados de
voltar a ser criança.
Assim revigorado no corpo e na alma
por esse maná divino caído dos céus, prossigo na minha caminhada matutina. Ando
não mais que 50 passos e estou sob uma longa alameda de pinheiros. Neles, não
há nenhuma fruta que eu possa roubar, pois nada produzem que possa ser comido.
Pinheiros não são para a boca. São dádivas aos olhos. É cedo ainda. O sol
acabado de nascer ilumina suas espículas verdes, que brilham como agulhas de
cristal. Lembro-me de Le Corbusier, que dizia que “as alegrias essenciais são o
sol, o espaço, o verde”. Mas os pinheiros sabem mais que o arquiteto, e às
alegrias da luz acrescentam as alegrias do cheiro. Respiro fundo e sinto o
perfume de resina.
Se me perguntarem no que penso,
respondo com um verso Tao: “O barulho da água diz o que eu penso”. Penso as
amoras, penso os pinheiros, penso a luz do sol, penso o cheiro da resina.
É tempo da floração das sibipirunas.
Verdes e amarelas, elas cresceram dos dois lados da rua onde ando,
transformando-a num longo túnel sombrio. Durante a noite, suas flores caíram,
cobrindo a calçada e transformando-a num tapete dourado. Desço da calçada e
ando no asfalto para não pisá-las. Lembro-me da voz misteriosa que falou a
Moisés, de dentro da sarça que ardia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois o
chão onde pisas é santo”.
Para contemplar esse espetáculo é
necessário levantar cedo, pois logo as donas de casa e suas vassouras tratarão
de restaurar no cimento a sua fria limpeza. Isso me dói, e com a dor vem o
pensamento. Pergunto-me sobre a educação perversa que fez com que as pessoas se
tornassem cegas para a beleza generosa das árvores, tratando suas flores como
se fossem sujeira. Mas as sibipirunas, indiferentes à cegueira dos homens e das
vassouras, repetirão o milagre durante a noite. Amanhã as calçadas estarão de
novo cobertas de ouro.
Caminho um pouco mais e chego ao
Bosque dos Alemães. Espera-me ali um outro deleite, o deleite dos ouvidos: há
uma infinidade de cantos de pássaros que se misturam ao barulho das folhas
sopradas pelo vento. Não estou sozinho. Fazem-me companhia muitas outras
pessoas, entregues ao exercício matutino do andar e do correr. Estão ali por
medo de morrer antes da hora. É preciso exercitar o coração. Mas parece que é
só isso que exercitam. Pois, por mais que me esforce, não consigo perceber em
seus rostos sinais de que estejam exercitando também o deleite dos olhos, do
nariz ou dos ouvidos. Correm e caminham com olhos fixos no chão, graves e
concentradas, compelidas pelas necessidades médicas. E, por causa disso, por
não saberem ver e ouvir, não se dão conta de um comovente caso de amor que ali
se desenrola. Percebi o romance faz muito tempo, quando ouvi os gemidos que
vinham do alto. Lá em cima, longe dos olhares indiscretos, um gigantesco
eucalipto e uma árvore de rolha se abraçam. Seus galhos entrelaçados revelam o
amor dos namorados. Acho que fazem amor, pois, quando o vento sopra fazendo
suas cascas se esfregarem uma contra a outra, elas gemem de prazer... e dor.
Ando toda manhã. Por razões médicas,
é bem verdade. Mas mesmo que não existissem, andaria da mesma forma, pelos
pensamentos leves e alegres que a natureza me faz pensar. Boa psicanalista é a
natureza, sem nada cobrar, pelos sonhos de amor que nos faz sonhar.
ALVES, Rubem. As melhores
crônicas de Rubem Alves. São Paulo: Papirus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário